Machu Picchu

Fiz algumas viagens como mochileira. Em geral viajo sozinha e com uma boa dose de disposição tenho feito viagens maravilhosas por esse mundo absolutamente lindo. Segue então o primeiro relato que fiz a Machu Picchu, no Peru. Não tenho nenhum interesse aqui, a não ser o de informar, aos jovens de coração e de espírito, o que podem encontrar no caminho, além de muita alegria, muito prazer e felicidade.
Boa viagem a todos!


Machu Picchu
O Vale Sagrado dos Turistas

    Caminhar pelo Peru tendo por objetivo chegar a Machu Picchu deixou de ser uma atitude de descoberta para ser mais um atrativo que empolga a indústria do turismo local. Chegar a Machu Picchu é hoje um empreendimento caro, fácil de ser alcançado pelos turistas europeus e norte-americanos, já que suas moedas possibilitam tornar a dura travessia dos incas numa empreitada divertida e sem grandes mistérios. Já para os brasileiros e sul americanos em geral, o mistério maior é conseguir fazer turismo com os parcos recursos que dispomos para aventuras dispendiosas como essa.
    Em Aguas Calientes, um pequeno povoado próximo a Machu Picchu, com o comércio local basicamente voltado para o turismo, há uma desproporção entre os preços dos hotéis que variam entre algumas dezenas de dólares e algumas dezenas de soles. Soles é a moeda oficial do Peru e equivale ao nosso real. A mesma desproporção pode ser sentida no preço da passagem de trem de Cuzco para Aguas Calientes, no preço da passagem de ônibus de Aguas Calientes para as ruínas, e ainda a entrada cobrada em dólares, aos visitantes estrangeiros, para o acesso ao Templo Sagrado de Machu Picchu.
    Muitas latas de cerveja, sacos de comida desidratada e alguns outros tipos de fast-food inundam as mochilas recheadas dos turistas, que são muitas vezes transferidas para as costas dos carregadores locais. As agências de turismo, equipadas para tornar a travessia do Vale Sagrado dos Incas em um acontecimento inesquecível para a vida pacata dos seus clientes, colocam um sem número de oportunidades para atrair a todos, com atividades para diferentes tipos e gostos, indo desde a simples caminhada, que pode ser de dois a quatro dias, até o turismo exotérico, que inclui cerimônias xamânicas em pleno Andes. É claro que tudo programado pelas agências locais em comum acordo com as agências de viagem espalhadas pelo mundo. Estima-se que Aguas Calientes é a porta de entrada para mil turistas/dia, oriundos dos mais distintos países, com os mais variados tipos de expectativa, e que podem ser satisfeitas em função da quantidade de dólares que dispõem. Mesmo os que tentam de alguma forma um turismo menos convencional, mais aventureiro, acabam por esbarrar em uma máquina muito bem montada para extorquir uma quantidade de valor considerável. Portanto, se você for, vá com margem folgada, sabendo que cada centavo gasto valerá a pena.

Como Chegar

Santiago

    Para quem sai do Brasil, em direção a Machu Picchu, o primeiro pouso pode ser Santiago do Chile, tendo como pano de fundo as cordilheiras cobertas de neve que margeiam a cidade. Santiago ainda respira um certo vigor europeu em suas bem cuidadas e resplandecentes avenidas do centro da cidade. La Plaza de las Armas, onde fica o palácio do governo, insinua uma história de luta, de conflitos sociais, de descontentamento e um certo inconformismo diante das questões sociais que se avolumam, como por exemplo a queda do nível social e econômico da população.

Apesar do dia ensolarado, em Santiago a neve é eterna

    Alguns dias em Santiago são suficientes para um ensaio do que virá depois em Cuzco, já que a altitude é bastante elevada na cidade. A vida noturna também proporciona muitos prazeres para quem gosta de bons restaurantes e de dançar. A moda musical na América do Sul é a salsa e a típica música andina, formada por grupos que misturam canções folclóricas com as tendências atuais. Esses grupos concentram-se mais no Peru, principalmente em lugares visitados pelos turistas, ávidos por uma cultura rica e distinta como a dos Andes.

Lima

    O segundo ponto de parada para os visitantes brasileiros pode ser Lima, apesar do inconveniente de sair de uma altitude elevada como a de Santiago e voltar para o nível do mar. Em Lima, a comparação com Santiago provoca uma retração imediata. O caos urbano é evidente logo nos primeiros minutos, a invasão de vans, carros e ônibus, numa corrida desenfreada e desordenada, provoca nos que chegam um impacto assustador. Depois da calmaria de Santiago, Lima se apresenta com um furor demasiado, uma luta pela sobrevivência tão descomunal, que ali se tem a sensação exata do que o estresse de uma grande cidade mal planejada pode desencadear nos seus habitantes. No entanto, dois bairros em Lima devem ser visitados. Um deles é Miraflores e o outro é Barrancos.   Ambos de classe média alta, esses bairros guardam a aconchegante beleza das praias, aliada aos jardins bem cuidados e abundantemente floridos.
O bairro de Barrancos, em Lima

    A vida noturna em Lima concentra-se em Miraflores e a comida peruana está presente em vários restaurantes, sejam eles sofisticados ou populares. O cheviche é uma comida típica, feita principalmente de frutos do mar e cozida apenas no limão, sem ir ao fogo. Cru, o cheviche vem servido fartamente com pedaços de aipim cozido, que é usado abundantemente na comida peruana.
    O milho – e há uma variedade deles – também é a base da alimentação local, desde os tempos pré-incaicos. O chincharron é outra comida típica, à base de carne de vaca, e muito consumida inclusive como refeição matinal. O mate de coca é um dos hábitos do povo, que funciona como um energético para quem precisa muitas vezes equilibrar os efeitos da altitude. O pisco é semelhante à cachaça brasileira, feita da cana-de-açúcar, e costuma ser usada abun-dantemente nos bares noturnos, transformada em pisco sauer.
    Um outro atrativo em Lima são os Mercados de Artesanato Inca que ficam na Avenida La Marina, e que vendem um tipo de arte peruana, de excelente qualidade, a preços bem menores do que os do circuito turístico. Um destaque maior se deve dar aos produtos tecidos com a lã de alpaca, usados na confecção de ponchos, camisas, camisetas, chales, bolsas, etc.

Cuzco

    Cuzco agora é o próximo objetivo para quem quer chegar em Machu Picchu. É de Cuzco que partem os trens que levam para o Vale Sagrado. Por sua altitude, a primeira providência que se deve tomar quando se chega à cidade é ingerir um mate de coca e comprar folhas de coca para mascar. Essas folhas são naturais, não provocam nenhuma alteração mental e ajudam a restabelecer o equilíbrio do corpo para quem não está acostumado a altitudes elevadas. Há também balas e toffes feitos da coca e que não são tão amargos quanto as folhas puras.Plaza de Las Armas – Cuzco à noite

    Cuzco é conhecida por sua vida noturna. São abundantes as casas noturnas que oferecem uma variedade enorme de atrativos para quem gosta de dançar, de ouvir boa música, assim como usufruir bons shows e da excelente comida cusquenha. A cidade, basicamente voltada para o turismo, oferece um passe para que o turista conheça seus principais monumentos históricos e ainda possa visitar ruínas como a de Pizac e Chincheiro.
    É imensa a quantidade de turistas que chegam no aeroporto de Cuzco, assim como é imensa a quantidade de agências de turismo que disputam a atenção dos que chegam com ofertas de pacotes variados, assim como translados e hotéis de diferentes preços. Ficar em Cuzco pode ser extremamente agradável, desde que os sintomas da altitude não prejudiquem a estadia. Uma alternativa interessante é sair de Lima para Cuzco e imediatamente pegar o trem para Machu Picchu, deixando que o corpo se aclimate a uma altitude intermediária de 2.500 metros como a de Machu Picchu e depois então retornar para os 3.800 metros de Cuzco.
    Cuzco em quéchua – idioma inca – significa centro, umbigo. E, realmente, de Cuzco partem praticamente todas as trilhas incas que levam ao Vale Sagrado. As travessias a pé pelo caminho inca são de dois tipos e incluem guia bilíngüe, além de pernoite e alimentação. O primeiro que é oferecido, tem a duração de dois dias e sai de Urubamba em direção a Machu Picchu. O segundo tem a duração de quatro dias e sai de Cuzco também com destino a Machu Picchu. Para os mais preguiçosos, ou ainda para aqueles cujo tempo é escasso, a melhor alternativa é ir de avião até Cuzco, de lá pegar um trem que leva até Aguas Calientes, e finalmente pegar um ônibus em Aguas Calientes para subir até as ruínas de Machu Picchu.

Abaixo, o Mapa do Vale Sagrado dos Incas (e dos turistas).Mapa do Vale Sagrado

    Para quem chega a Cuzco de avião, o que mais impressiona são as neves geladas dos Andes. Durante uma boa parte do percurso final até a cidade, o avião sobrevoa uma extensa região encoberta pela neve, descortinando aos nossos olhos algumas áreas pouco conhecidas até mesmo para a população local.Os Andes gelado – vista do avião

    Cuzco, a capital dos Incas, é uma cidade em que se pode perceber a dominação espanhola e a destruição que os cristãos promoviam nas civilizações e nas culturas que caíam sob sua dominação. Cuzco era o centro do melhor que a cultura incaica pode produzir. Como capital do Tahuantisuyo – que em quéchua significa “Os Quatro Cantos do Mundo”, ou seja, o Império Inca que se estendia por todo o Peru, Bolívia, Equador, sul da Colômbia, metade superior do Chile e noroeste da Argentina, Cuzco era o centro religioso, político, cultural, militar e econômico mais poderoso do império incaico.
    Praticamente destruída, sobraram apenas os alicerces das construções que os espanhóis demoliram para construírem em cima suas paredes em estilo colonial. Impossível de ser demolido, pelo tamanho das pedras e pelo encaixe feito com perfeição milimétrica, o submundo de Cuzco são as entranhas do império inca, presente também nos corredores estreitos de suas ruelas que terminam algumas em extensas escadarias.     A Calle Loreto, que desemboca na Plaza de Las Armas é uma sobrevivente incaica, preservada para pedestres e que exibe ainda um calçamento feito com enormes lajes de pedra.
    O Templo Del Sol é um bom exemplo do que aconteceu ao império inca. Ao se percorrer seus corredores, um mal-estar crescente se apropria de nós. As magníficas pedras e seus encaixes, seus códigos e significados, que extrapolam a simples compreensão que temos hoje, mostram que uma civilização de dezesseis mil anos está ali definitivamente encoberta pelas telas de pintores espanhóis, cujo tema principal era o clero. Nas telas, os olhares frígidos dos padres e das freiras interrompem o silêncio úmido das paredes que se calam, como se tivessem o poder de encobrir o verdadeiro conteúdo do templo – a adoração ao sol – e fingissem uma castidade exagerada, imprópria, fora de contexto.
    As construções espanholas de Cuzco em geral têm dois pisos e varanda de madeira entalhadas à mão. As maiores possuem amplos pátios com jardim interno onde bate o sol pela manhã. Alguns hotéis, inclusive, têm essa arquitetura. Outro atrativo interessante é o museu incaico. Nele pode-se, com mais facilidade, perceber detalhes da civilização inca, sua arte, seus costumes, seus rituais, assim como a precisão de sua astronomia, a organização político-social das cidades e o conteúdo rico e abundante de suas crenças. Por suas características históricas e geográficas, Cuzco é considerada a Capital Arqueológica da América do Sul e Patrimônio Cultural da Humanidade.
    A cidade abre caminho para a visitação de outros sítios arqueológicos que fazem parte do Vale Sagrado dos Incas e de onde partem grupos em extensas caravanas místicas em busca de uma sabedoria perdida. Mesmo que a miscigenação tenha ocorrido de forma incipiente, já que quase a totalidade da população tem traços profundamente indígenas, a memória cultural do povo é recente, cujo suporte social é a religião católica, seus santos, suas crenças e que leva o peruano a uma atitude submissa diante de sua história milenar, mas esquecida.
    De Cuzco pode-se optar por algumas alternativas. A primeira é conhecer as ruínas mais próximas da cidade, como Saqsayhuman, Chincheiro, chegando até a Pizac, famosa por suas ruínas e pelo artesanato local. A segunda alternativa é ir a Puno, que fica a oito horas de Cuzco no sentido contrário às ruínas, e que leva ao Lago Titicaca. E a terceira opção é seguir direto para Machu Picchu, objetivo principal da viagem.

Aguas Calientes

    O trem que sai de Cuzco para Aguas Calientes, leva mais ou menos cinco a seis horas em seu percurso e oferece um serviço bem inferior ao preço que cobra. Apesar disso, a viagem é linda e passa por algumas estações, margeando vilarejos e alguns sítios arqueológicos. Os Andes acompanham o circuito que o trem faz e em muitos trechos pode-se avistar os cumes cobertos de neve.
    Aguas Calientes é um pequeno lugarejo com três ou quatro ruas principais, uma praça e visitantes do mundo inteiro. O trem passa no meio da pequena cidade, tangenciando perigosamente as barracas de artesanato, ameaçando a integridade física dos comerciantes e dos turistas desavisados.
O trilho do trem esbarra nas barracas da Feira de Artesanato de Aguas Calientes

    Possui uma população local voltada para o turismo, e que inclui em seu roteiro as famosas termas medicinais que atraem pessoas dos mais variados cantos do mundo para tratamento de saúde. Na verdade, as termas públicas, de propriedade do município de Aguas Calientes, são muito simples e compostas por cinco pequenas piscinas individuais com chuveiro e uma única piscina grande onde se concentra a maior parte das pessoas. A higiene é quase nenhuma e as águas são trocadas no final do dia, o que pode vir a comprometer a qualidade dos banhos termais.
    A estadia em Aguas Calientes é cara, pois os preços são três vezes mais elevados que os de Cuzco. O motivo é que a companhia férrea, que é privada, cobra uma exorbitância dos comerciantes para transportar as mercadorias para lá.
    Além de ser um ponto de partida para Machu Picchu, Aguas Calientes é importante também pela sua vida noturna, pelos restaurantes requintados, por suas características geográficas, sua beleza natural e por concentrar uma população itinerante ricamente composta por pessoas de várias nacionalidades.

    O caminho de Aguas Calientes para Machu Picchu pode ser feito de ônibus, mas também pode ser feito a pé, margeando o rio, e aonde se chega a uma escadaria íngreme, tortuosa, no meio de uma floresta de aspecto tropical, que se eleva uns 500 metros acima de Aguas Calientes. O caminho de ônibus é rápido e segue por uma estrada de terra batida bem conservada. O caminho pela escadaria, inclui alguns mosquitos, cansaço pela subida íngreme, a má conservação das indicações e das setas, e ainda a possibilidade de algum acidente, mesmo que pequeno, já que é necessário algum preparo físico. A caminhada leva em torno de uma hora e meia a duas para dentro da floresta. E o ônibus faz o percurso em vinte minutos.
A escadaria do caminho para Machu Picchu
As setas apagadas do caminho, o único sinal dentro da floresta

Machu Picchu

    Em Machu Picchu, após comprar-se a valiosa entrada, desnuda-se para os visitantes todo um universo que parece vivo, recém-abandonado, onde se pode encontrar muitos restos de uma civilização que ainda habita o Peru, mesmo que não o saiba. Machu Picchu é a história atual dos sobreviventes. É o templo sagrado das sacerdotisas, o encontro dos Andes com os Andes, dos homens com os deuses em sua viagem cósmica. Nada lá é exagerado, a não ser a exuberante cordilheira que se agiganta primeiro em quatro imensas montanhas, da qual Machu Picchu faz parte. Logo mais adiante, em torno dessas montanhas, mais quatro rodeiam o despenhadeiro, formando um muro rochoso impenetrável. E finalmente ao redor dessas oito montanhas, mais nove abraçam o céu, sinuosas e silenciosas, encerrando quem sabe o mistério feminino dos espíritos que habitam cada uma delas. Para os Incas, o espírito das montanhas é feminino, assim como o espírito da terra, a quem eles chamam de Pacha Mama, e para quem eles oferecem as folhas de coca.

O início de Machu Picchu

    Para alguns estudiosos, Machu Picchu era a morada das acclas – virgens do sol – meninas selecionadas ainda pequenas, levando-se em conta suas qualidades físicas e morais. Essa conclusão baseia-se no fato de que 80% dos corpos mumificados e encontrados nas escavações eram de mulheres. A acllahuasi, Casa das Escolhidas, era um lugar onde as jovens ficavam enclausuradas e recebiam educação refinada. Havia as acllas do Inca, com finalidade estatais e a acllas do Sol, com finalidade religiosa. Machu Picchu parece ter sido um local de recolhimento superior, especial para o apuro do espírito, do físico, da arte e dos sentimentos elevados.

As ruínas

    A cidade cobre uma área de 700 metros de extensão de norte a sul e 500 metros de largura, levando-se no mínimo um dia para conhecê-la. Divide-se em três setores: um agrícola, um urbano e um religioso, com santuários, praça de oferendas, corredor para meditação e ainda mirantes para a observação dos astros, relógios cósmicos e bússolas precisas. O centro urbano é composto por doze bairros e 216 prédios entre moradias, templos, palácios e oficinas. Lá dentro sente-se a força de um outro centro, um outro cuzco, ou outro umbigo dentro de Cuzco, um outro nível da gravidade terrestre, que torna o ar mais leve e mais arejado para quem sobe e alcança seu pico mais alto.

Os picos de Machu Picchu

    O caminho dos homens começa em Aguas Calientes e segue o caminho que os incas trilhavam em seu desenvolvimento espiritual, para cima das montanhas. Hoje esse caminho é trilhado também por homens e mulheres que não sabem sequer porque trilham. Um pouco pela moda, talvez, um pouco pela sensação de estarem fazendo alguma coisa por si mesmos, um pouco pelo resgate das almas que perderam sua identidade ali, um pouco porque são turistas e desbravadores, porque gostam das aventuras que possam surgir no caminho. O caminho inca, o caminho dos homens, o caminho atual dos turistas sempre provocou nos viajantes uma aventura para além do estado condicionado a que estão acostumados. Importa nessa viagem existencial, o significado que será acrescentado em suas vidas, e a mudança que Machu Picchu poderá provocar apenas permanecendo inalterável através dos tempos, proporcionando ainda hoje um contato com os mistérios que se encerram dentro de cada um.
    Machu Picchu tem o caráter dos sonhos, a mesma matéria prima, soberba e inalcançável, que se agiganta diante dos nossos olhos semi-despertos, como se fosse o inconsciente da humanidade, algo que tangenciamos sem saber exatamente o verdadeiro significado. É a busca ancestral do mais íntimo que o ser humano carrega dentro de si, e que desconhece, esse selvagem que só será divinizado se houver compreensão do processo de sua subida lenta e progressiva ao patamar dos deuses.
    Tive uma iniciação xamânica no pico mais alto de Machu Picchu e que forma uma espécie de mesa de ritual ao lado de um enorme desfiladeiro. Chovia muito e estava eu e o Zé, o xamã a quem entreguei minha confiança. Machu Picchu estava deserta e a tempestade nos fez procurar uma das cavernas até que pudéssemos escalar o topo do pico onde seria feita a minha iniciação.
    Foi então que recebi do Zé, sempre ajustando pacientemente seu chapeuzinho, algumas indicações sobre o que significavam as oferendas de coca e como fazê-las, além do significado das réplicas das montanhas que se via aqui e ali na medida em que aguçávamos os nossos sentidos. Obtive muita informação nessa época e o meu coração até hoje agradece por esses momentos tão especiais.

Pizac
Um Pedaço do Sagrado

    Saí de Machu Picchu e continuei a viagem pelo Vale Sagrado dos Incas. Soberba, protegida pelas montanhas, a cidade de Pizac parece ter sido construída com a finalidade militar de proteção do império inca, mas também teve uma importância primordial na influência que suas construções pré-incaicas exerceram muitos anos depois. Nela encontramos prédios com construções em sítios distintos, sendo algumas identificadas como construções antigas, pré-incaicas, datadas aproximadamente de 1.000 a 1.200 a.c.     A característica principal de Pizac é que ela está rodeada por esse tipo de construção, o que nos possibilita conhecer de perto a origem de uma civilização de deixou traços mais fortes de sua existência do período incaico em diante, cerca de 500 anos atrás, em outros sítios históricos do Perú.
    Por esse motivo, depois da cidade sagrada de Machu Picchu, o sítio histórico e geográfico de maior importância é a cidade de Pizac, originalmente Pizaca, e que significa em quéchua – idioma inca – perdiz. O fato é que o turismo no Vale Sagrado dos Incas aumenta a cada ano e a grande quantidade de pessoas provenientes das mais distintas partes do planeta convergem inevitavelmente para Pizac. A melhor forma de se chegar à cidade é pegando um ônibus em Cuzco, cujo trajeto tem a duração de uma hora e meia, de preferência num sábado, permanecendo até o dia seguinte na região para um acontecimento à parte – a feira artesanal de Pizac, que ocorre aos domingos durante o dia inteiro.

Em Pizac, ao lado dos famosos degraus ou Andenes.

    A cultura inca estava dividida em três classe sociais: o povo (os airus), a classe média (os panakas) e a classe alta (a nobreza e o inca, chefe supremo). O primeiro sítio que nos deparamos em Pizac tem suas construções simples, erigidas sobre pedras de formatos diferentes e dispostas sem um cuidado maior uma sobre a outra. É o sítio urbano, onde ficava alojada a população mais pobre. O segundo sítio, com suas torres e mirantes, de onde se descortina todo o vale ao redor das montanhas, é o sítio militar, e suas construções já têm um acabamento mais aprimorado. O último, onde residia a nobreza e o inca, apresenta uma conformação rigorosa na colocação de imensas pedras, de corte exemplar e milimetricamente encaixadas umas sobre as outras. Há ainda um quarto sítio, onde ficam aproximadamente cinco mil tumbas – e que é considerado o maior cemitério inca de toda a América – mas que foi pouco protegido dos saques feitos pela população local e de onde foram retirados verdadeiros tesouros da época pré-incaica.

Na foto, duas tecelãs trabalham à sombra das ruínas.

    Andenes são as terras de cultivo, os degraus incaicos próprios para a agricultura. Os de Pizac são magníficos – já que a cidade era um centro agrícola importante, onde se plantava principalmente maiz (milho). Há aproximadamente quatro mil andenes em torno das montanhas de Pizac e que atendiam a uma população de cinco mil pessoas. Aliás, os andenes estão presentes praticamente em todo o Perú, pois além de servirem para a agricultura, evitam a erosão e são perfeitos para o cultivo em regiões de muita chuva.

    A porta de entrada para a cidade é chamada a porta da serpente, ou a porta da sabedoria e da inteligência, porque para os incas a serpente simbolizava essas duas coisas. O primeiro pátio, imenso, e que se debruça sobre as mais altas montanhas, era uma espécie de observatório astronômico, mas servia também para a comunicação que se fazia entre os três sítios, e ainda permitia que se observasse de muito longe a chegada de qualquer presença inoportuna. Um outro detalhe, mas de importância estratégica são os túneis escavados nas rochas e que comunicam os sítios entre si. Esses túneis foram construídos para que a população pudesse se esconder em caso de ataque inimigo, quando então os túneis eram bloqueados para que o inimigo não tivesse acesso ao outro lado.
    O vale é circundado pelo Rio Urubamba, que originariamente tinha o nome de Rio Sagrado, por isso esse sítio ainda hoje leva essa denominação. Apu la Ñusta ou a Virgem del Sol é a deusa que cuida dessas montanhas, sendo que El Templo del Sol – Intiwatana – é o sítio mais importante de Pizac. Inti em quéchua quer dizer sol e watana quer dizer amarrado, ou seja, amarrado ao sol. É o sítio religioso, onde estão os templos e as grandes pedras, que alguns acreditam terem sido utilizadas para sacrifícios de animais. Nesse lugar residiam os sacerdotes e representantes da classe média da cidade, e as construções são mais bem acabadas que as construções comuns.
    O que chama a atenção nas construções incaicas são as janelas abertas e fechadas dos cômodos dos prédios que serviam à população, o que leva a crer que as abertas serviam, obviamente, para a entrada da luz e do ar, e as fechadas serviam para a colocação de peças de utilidade e adornos. Nos templos, haviam só janelas fechadas e que serviam para colocação de oferendas e peças de conteúdo religioso. As festas e grandes eventos religiosos aconteciam do lado de fora, tendo por teto o céu, em imensos espaços abertos e circundados pelo despenhadeiro e pelo maciço das montanhas, que forma uma bela parede aconchegante e protetora.
    Nas canteiras, onde se trabalhavam as pedras, ainda se encontram nas escavações objetos que eram utilizados na extração e no corte das pedras. As culturas pré-incaicas, Wari e Tiawanacu eram exímias na arte da construção em pedras de corte preciso e encaixe perfeito. Por isso, crê-se que algumas construções destas culturas, em Pizac, tenham servido de modelo para as construções que vieram depois já na época incaica, quando os melhores arquitetos devem ter sido requisitados para repetirem o mesmo cuidado e esmero dessas construções anteriores.
    No Templo do Sol e da Lua, ou do feminino e masculino, ou ainda, do inca e da coya, sua mulher, há duas portas dianteiras por onde se entra sem que haja conexão no interior das duas construções. Assim como o Templo do Arco Íris, esse dois têm uma importância fundamental na estrutura religiosa de Pizac.
    Na Feira de Pizac, importante pela qualidade do artesanato desenvolvido na região pelas fiandeiras, e por uma série de excelentes artesãos, o produto mais refinado e de melhor aceitação entre os turistas são os ponchos, as bolsas, blusões, meias, etc. confeccionados com a lã de alpaca, extraídos do pelo da lhama. Os artefatos de barro, pela exuberância de suas cores, e ainda as joias de prata, pela sofisticação de seus entalhes, também atraem os turistas e movimentam o comércio local, famoso já pela sua originalidade artesanal.
    No entanto, apesar da grande quantidade de turistas de várias nacionalidades que chegam a Pizac nos finais de semana, na cidade praticamente não existem bons restaurantes, nem hotéis de razoável qualidade. A melhor alternativa é pernoitar em Urubamba, cidadezinha perto de Pizac e que tem uma infra-estrutura mais adequada. Urubamba, longe de ser uma cidade dormitório, impressiona pela beleza original da massa compacta das montanhas que a cercam. Pequena, pacata e agradável, a cidade atrai sem que se saiba exatamente o porquê. Sem ruinas, sem feiras de artesanato, sem qualquer atrativo que não seja uma cama limpa e um prato de comida mais saudável, Urubamba tem uma magia especial que se desprende dos Andes e envolve a cidade num clima aconchegante. De Urubamba pode-se seguir para Chincheiro dando uma chegadinha antes em Ollantaytambo, duas cidades também importantes por suas ruínas e que fazem parte do circuito inca.

Puno
O Mar de Água Doce

    Esta minha viagem terminou em Puno, de onde voltei depois para o Brasil, apesar de ter ficado em dúvida se aproveitava e pelo Lago Titicaca passava para o lado Boliviano. Mas, preferi retornar. Para quem não sabe, Puno fica a 3.800 metros de altitude e o Lago Titicaca é um verdadeiro mar suspenso de água doce. É conhecido pela sua beleza natural e pelas ilhas flutuantes, construídas com totora, um tipo de junco tirado das margens do lago. O chão é maleável e afunda sob o peso dos pés. As ilhas flutuam e mudam de posição lentamente. A mais importante dessas ilhas é a de Uros, onde um pequeno grupo de indígenas aymaras vivem.

    Os barcos, feitos de totora, deslizam pelo Lago Titicaca, como nos tempos dos nossos antepassados incas, cortando silenciosamente a água, indiferente ao ronco distante dos iates que transportam os turistas.

Tribo Aymara na Ilha de Uros, Lago Titicaca – Puno

    As agências de viagem locais cobram um valor não muito alto pela excursão de um dia nas ilhas de Uros e Taquile, com direito a guia bilingüe (espanhol e inglês) e um agradável almoço em restaurante típico em uma das ilhas ( o almoço é à parte). O preço dos hotéis não seguem a mesma lógica das agências. Na verdade, não seguem lógica nenhuma. Pode-se encontrar um hostal que oferece os mesmos serviços de um hotel três estrelas, por um preço bem menor. Os valores variam entre algumas dezenas de dólares e alguns poucos soles, o que significa que em Puno é bom chegar ou com uma indicação precisa ou pesquisar os preços antes de se instalar.
    Outros passeios também são oferecidos pelas agências. Um deles, de dois dias e uma noite, inclui as duas ilhas mencionadas anteriormente e mais uma – Amantaní. Nesta última, está incluída a visita ao Templo de Pachatata e ao de Pachamam. Há ainda as ruínas de Sillustani, que é um cemitério pré-inca, datado de 1.100 a.C., um dos mais importantes da América, ao lado do de Pizac.

Índígena Aymara, conduzindo seu barco feito de totora

    A viagem para Puno nem sempre vem de forma desavisada. Irmã de Copacabana, sua metade boliviana, que lhe fica quase defronte, Puno é extremamente agradável, mesmo que a sua população se sinta desconfortável por causa da enxurrada de estrangeiros que chegam apenas para uma visita ligeira às sua ilhas mais próximas.
    A cidade, pequena e hospitaleira, tem um comércio forte e agitado, que inicia suas atividades muito cedo – por volta das seis da manhã – quando os primeiros aviões chegam ao aeroporto, despejando uma quantidade enorme de turistas dos mais diferentes países.
    Outras ilhas de inigualável beleza, como Taquile, podem ser visitadas. De chão firme e com uma topografia que se eleva muitos metros acima do nível do lago, Taquile ainda esconde vestígios da civilização inca, bastante evidente em sua população simples e hospitaleira. Nela se pode almoçar as iguarias locais, inclusive um peixe especial de água doce, que é seco ao sol, e depois preparado com ervas da região, e de sabor inigualável.

    Rico em cantu, a flor sagrada dos incas e que é a flor oficial do Perú, em Taquile os efeitos da altitude podem se tornar mais evidentes, já que a sua altitude, somada à de Puno, chega a 4.100 metros. Lá as folhas de coca podem se tornar indispensáveis, assim como o chá que os nativos preparam de uma erva abundante em Taquile e que serve, como a coca, para tirar o cansaço e a letargia provocada pela altitude excessiva. O Lago Titicaca, legendário não só pela sua beleza, mas também pela mitologia dos antepassados que habitaram suas margens, tem uma flora e uma fauna exuberantes e em muitos trechos uma água límpida e cristalina. Em outros trechos, fruto um pouco do esgoto que vem da cidade e um pouco da própria totora que cresce forte em extensos espaços, existe um limo verde que encobre boa parte de suas águas.
    É importante também chamar a atenção para o artesanato local, de excelente qualidade. O pelo de alpaca, tecido pelas fiandeiras, produz uma roupa de especial qualidade, assim como objetos de decoração característicos da região, e fabricados em totora, atraem pela precisão com que são trabalhados.
    Para se chegar a Puno, basta estender a passagem aérea para o aeroporto que serve a cidade. Uma dica importante para quem tem tempo e disposição é dar uma chegada a Copacabana, na Bolívia, outro passeio imperdível no Lago Titicaca.

Eliane Ganem