No final do século XX, a partir dos anos 60 especificamente, a transformação social que ocorreu, determinando um novo tipo de estrutura familiar, bem diferente da forma como as famílias eram constituídas, provocou também uma distorção na Educação. Tanto as comunidades quanto as escolas, exatamente por não estarem equipadas para a socialização dessa nova geração, têm recuado no seu papel social criando brechas que estão sendo ocupadas pela infinidade de novas igrejas, profusamente constituídas principalmente nas comunidades aculturadas. O pacote oferecido pelas igrejas atuais – já que o estado, a comunidade e a escola não estão cumprindo eficazmente a parte que lhes cabe – inclui treinamento moral específico, necessário ao embasamento social das crianças e adolescentes, mas exclui todo e qualquer pensamento crítico. Ou seja, no momento em que a comunidade foi usurpada de seu papel social pela escola, no momento em que essa mesma escola criou para si o lugar de um conhecimento inviolável e excludente, foram fundadas as bases para a situação atual da Educação e o despreparo atual dos nossos jovens, tanto para ingressar no mercado de trabalho, quanto na formação de uma massa crítica e socialmente bem estruturada.
Crianças e adolescentes de um Brasil silvestre apresentam um determinado tipo de conhecimento que extrapola as convenientes salas de aula onde se aprende através de um ensino forjado pelas necessidades de uma sociedade branca, de primeiro mundo, ocidental e que se pretende universal. Em Estados como o Amazonas, por exemplo, mesmo considerando os grandes centros como Manaus, encontramos uma riqueza cultural excepcional e que não passa pela escola. Filhos de indígenas, caboclos, mestiços, brasileiros de um país sem igual no mundo, certamente essas crianças e jovens não necessitam de uma intervenção escolar que lhes diga de sua diferença, na maior parte das vezes, inaceitável para uma sociedade que se quer manter branca e ocidental. Nesses casos, a escola da forma como tem atuado, é um desserviço, e não uma possibilidade de definição cultural, muito menos de resgate social dos nossos jovens.
A escola, de acordo com os critérios de avaliação baseados na evasão escolar, se mostra inapropriada. Há uma sabedoria popular riquíssima, inclusive ativa – passada de geração para geração – e que inclui a passagem de um conhecimento que está se
perdendo exatamente por causa da intervenção escolar. Essa cultura rica, vasta e poderosa, precisa ser preservada pelo Estado, como patrimônio imaterial do nosso povo. Para isso a escola serviria como lugar de estudo, de reflexão, de autoconhecimento desse grupo social, elevando a autoestima e promovendo nas crianças e jovens um real interesse por sua riqueza cultural única. Seria um tipo de escola própria, com critérios de avaliação únicos, voltadas não só para a comunidade, mas também para o resto do país – e até mesmo para o mundo. Um exemplo dos estudos que poderiam ser desenvolvidos pelos jovens são as ervas medicinais que encontramos na Amazônia, e todo um conhecimento empírico na escolha dessas ervas, no cultivo, na utilização, e que tem sido passada de geração após geração pelos seus habitantes. Outro exemplo, são as manifestações culturais, a maior parte ligada à tradição oral e que se expressam na música, na dança, na literatura, ou seja, em toda uma cultura que chamamos de popular. Interessa-nos, portanto, agora, uma escola nossa, com um olhar nosso, com uma atitude voltada para a própria comunidade que antes de aprender pode nos ensinar através de sua sabedoria, desconhecida por aqueles que vivem fora desse habitat. Da forma como as escolas se organizam hoje, e o conteúdo que elas pretendem passar para os jovens – ativos dentro das comunidades onde vivem – diz respeito a uma cultura urbana, de uma pseudoelite aculturada e que não provê e nem qualifica ninguém. O mercado de trabalho nessas comunidades também se perverte em torno de uma modernidade mórbida, que mata culturalmente seus filhos, sem promover nenhuma transformação de qualidade. Uma escola própria, cuja intenção seja a formação de novos mestres – digamos assim – na passagem de um conhecimento oral – que pode ser sistematizado, é um das propostas a serem alcançadas. Nesses locais, de interesse nacional, a escola não teria por objetivo nivelar a todos no conhecimento branco, importado. Ou seja, não estaria interessada em homogeneizar as mentes numa só cultura, mesmo porque a formação dos professores está baseada também em experiências aculturadas, plasmadas nesses modelos que importamos, e que eles aprenderam em escolas semelhantes quando também eram crianças e jovens. É importante frisar que as escolas, se apropriando daquilo que sempre excluímos, resgatariam uma espécie de elo perdido que nos aproximaria de nós mesmos, de nossa diversidade cultural e de nossa riqueza, oferecendo aos jovens que aí vivem a contrapartida no resgate de sua própria dignidade cultural.
Eliane Ganem