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Educar é parte de uma situação em que nos envolvemos com alguém semelhante a nós, em geral mais novo, e a quem temos o dever de orientar, esclarecer e formar de acordo com as nossas crenças. Na verdade, como representantes da sociedade temos o dever de passar para as nossas crianças e jovens aquilo que aprendemos- nós também – de outros seres semelhantes, pais e professores – e que nos ensinaram de alguma maneira a sua forma de interagir com o mundo, dentro também de suas próprias crenças e limitações.
Educar, portanto, é oferecer ao outro um universo que moldamos de acordo com a nossa própria necessidade e que em geral não corresponde à realidade, porque da realidade nada sabemos. E essa forma de agir vem se repetindo sem que surjam novas possibilidades de passagem do conhecimento, mesmo com o desenvolvimento da tecnologia, pois os filtros com os quais enxergamos aquilo que chamamos verdade continuam praticamente os mesmos.
Educar, conhecer, descobrir, aprender são palavras sinônimas que nos apontam para precipícios se a comunicação entre a sociedade e aquilo que está sendo passado para os nossos jovens contiver ruídos que prejudicarão a mensagem. Na teoria da comunicação, chamamos de ruído toda e qualquer interferência na mensagem a ponto até mesmo de anulá-la. Portanto, para que possamos entender o que cada palavra acima significa é melhor traçarmos um mapa de acesso que nos conduza à nossa própria educação não só como indivíduos, mas como seres cuja tarefa é a educação de outros seres.
Vamos fazer uma exame de nossa situação como educadores. A escola em que aprendemos, os professores que nos influenciaram positiva e negativamente, os maus tratos ocorridos dentro da escola ocasionados pelos outros meninos ou meninas, os nossos pais, amigos, o nosso bairro, o nosso município, os nossos traumas, o que foi significativo na nossa aprendizagem, aquilo que não nos serviu e provavelmente não nos servirá e que até pode ser descartado que não fará nenhuma falta ao nosso conhecimento. Na verdade, nós adultos, somos um somatório de nossos aprendizados, das nossas experiências, hábitos, costumes sociais, padrões de comportamento adquiridos dos nossos parentes mais próximos, enfim, daqueles que de alguma forma serviram de modelo para a construção da nossa identidade. E com isso nos damos por satisfeitos já que funcionamos de forma razoável e adequada à maior parte das atividades que nos são exigidas.
Se moramos num país de primeiro ou de terceiro mundo, cujas relações sociais são pautadas pelas oportunidades maiores ou menores que temos a nosso dispor. Se vivemos num país em guerra ou em situações de paz que permeiam toda a nossa vida, e que vão determinar a nossa existência no planeta. Se habitamos um país posicionado acima ou abaixo da linha do Equador, em países tropicais ou em países menos ensolarados, cujo inverno predomina nas mentes como um elo que aproxima as pessoas, organizando-as em torno de uma melhor qualidade de vida mesmo em lugares inóspitos e gelados. Se convivemos com grandes diferenças sociais, com grandes dificuldades econômicas, de raça, de tradições que dificultam o nosso crescimento, de situações familiares que determinam o nosso posicionamento no mundo. Ou seja, a vida que nós levamos e as oportunidades que temos para crescer vão determinar a nossa felicidade ou infelicidade na nossa infância, juventude, fase adulta e também na maturidade.
No Brasil temos uma singular sociedade miscigenada. Como sabemos, o povo brasileiro é extremamente rico em sua diversidade e bem sucedido – se compararmos com o resto do mundo – nas suas questões raciais. Houve uma feliz coincidência na formação do nosso povo desde a colonização. Não pretendo aqui repetir o que já sabemos a respeito das guerras de ocupação das terras indígenas, que persistem até hoje. Nas guerras de confrontação entre fazendeiros, grileiros e nativos, tantas nações indígenas que foram praticamente dizimadas, inclusive pelas doenças trazidas pelo homem branco. Mas estou me referindo a uma realidade mais urbana. No início do século passado, tínhamos uma nação ruralista, mas com a primeira grande guerra e, principalmente, com a segunda guerra mundial uma quantidade enorme de imigrantes estrangeiros inundou o país com as suas crenças, tradições, expressões artísticas, religiosidades trazendo para as grandes cidades suas experiências milenares de vida.
Assistimos isso, por exemplo, com o nosso teatro, que deu um salto qualitativo ao sofrer a influência do teatro europeu na figura de pessoas como Ziembinski, Guarnière e muitos outros. A influência também na literatura brasileira foi enorme, o cinema e a televisão, assim como todo o resto do país, foram abocanhados por uma gama enorme e diversificada de indivíduos – e até mesmo grandes grupos de pessoas que fugiam das guerras em vários países. Por isso, a meu ver, o Brasil se tornou um território neutro e pacifista, constituído por fugitivos – alemães, italianos, que se fixaram principalmente no sul do país – e que conseguiram superar a violência da guerra rejeitando-a em suas relações uns com os outros. Árabes e judeus que se espalharam por vários Estados também é um excelente exemplo disso . Assim como os japoneses, que se fixaram principalmente no interior do Estado de São Paulo e na capital. Enfim, multidões significativas oriundas de várias partes do mundo, que procuravam a paz perdida. Povos cansados que vieram para cá com a necessidade primeira de fugir do horror da guerra e encontrar a paz, não importando as diferenças sociais, políticas, raciais, enfim nada. Esses grupos, que se voltaram para o novo mundo – a América – trazendo em suas bagagens a certeza de que deixavam pra trás o pior do seu passado, aquilo que não havia dado certo, aquilo que dividia, maltratava a alma e subjugava o espírito, semeando a infelicidade, a discórdia e a crueldade em seu extremo. O homem havia chegado ao seu limite.
E aqui foi o lugar da reconstrução moral, do sol que animava os novos sorrisos, das esperanças que semearam campos de convivência pacífica entre os povos. E isso tem sido a nossa maior riqueza, esse nosso estado de espírito leve e descontraído. Conheci, há pouco anos, um francês em Jericoacoara – considerada a praia mais bonita do planeta. Ele me confessou que quando chegou aqui aconteceram alguns confrontos no âmbito cultural e que resultou para ele em um novo aprendizado de vida. Aqui, para ele, não há rancor cultivado, não há aquela indisposição, que há em outros povos, de cultivar o negativo. Aqui as brigas, as discussões e as diferenças são esquecidas com uma rapidez que ele não estava acostumado. As questões morais não pesam excessivamente, podem ser esclarecidas com um sorriso amplo, um pedido de desculpas, uma expressão como “ Ah, deixa disso!”. Longe de querer fazer qualquer tipo de apologia ao país, mas procurando estabelecer os limites do nosso sucesso e do nosso fracasso em outras questões também de natureza social, é que vale aqui apontar na direção da construção da nossa identidade social como um povo sui generis.
O que esperamos das novas gerações é que elas continuem a cultivar aquilo que os nossos ancestrais trouxeram, essa ganância pela paz, mesmo que os conflitos no interior do Brasil pelas questões de terra ainda aconteçam, mesmo que a exploração do nosso povo ainda se dê de forma perversa, mesmo que discordemos da atuação política dos nossos dirigentes. Somos um povo miscigenado por nações antigas, cansado do confronto, aprendemos que não é na matança dos nossos companheiros de planeta que vamos resolver as nossas questões. Apesar de termos tido ditaduras cruéis como a de Vargas e a ditudura militar mais recentemente. O que nos leva a crer que o poder dos governantes encontra terreno passivo para as suas idiossincrasias. Mas o nosso bem primeiro, a base da nossa educação, é a busca da tranquilidade, da paz de espírito. Enfim gostaria de pensar que estamos criando seres conscientes, cuja coragem principal é a de aceitar o outro, aceitar a diversidade, aceitar o pensamento diferente. A verdadeira democracia não está na promoção da igualdade humana. A igualdade humana é desumana. Jamais serei igual a nenhum outro ser vivente. Meu dna é único, minhas impressões digitais são únicas. Sou original e quero ser aceito na minha diferença. A verdadeira democracia está baseada na diferença, e a nossa diferença é a nossa única igualdade. Somos todos diferentes perante o universo e todos iguais apenas perante a lei, já que uma lei individual seria impossível de se administrar socialmente.
Somos um país que muito tem pra ensinar ao mundo, não na tecnologia, não na cultura clássica, não nas questões de coesão social onde o coletivo prevalece. Mas na nossa diversidade cultural, na expressão da nossa arte, da nossa música afro-cabocla, na explosão das cores intensas dos nossos quadros, no contorcionismo do corpo do nosso povo nas esculturas de barro do interior, na inclusão pacífica de povos dos mais diferentes continentes, no respeito pela religiosidade, pelas diferentes crenças, pelos valores individuais e de grupos, pela opção em se calar muitas vezes evitando o confronto, mas adquirindo posse de espaços alternativos conquistados com o nosso jeito muito especial de contornar as adversidades. E aí eu me lembro do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, e também do meu Faustino, um Fausto Nordestino, ambos uma homenagem ao nosso povo e a sua forma inusitada de viver a vida com criatividade, independente de sua precária formação escolar e da escassez de recursos materiais.
Somos um povo único. A organização social que aconteceu no nosso país no correr do século XX nos deu uma autonomia em relação ao resto do mundo, que podemos classificar como quase espiritual. E isso não é apenas uma apreensão minha. A maior parte dos grupos espiritualistas e holísticos do mundo inteiro apontam o Brasil como o lugar de onde irá surgir uma nova raça e uma nova atitude diante das questões antigas que parecem estar insolúveis na maior parte dos outros países. Temos uma constituição física forte, o nosso povo está acostumado às crises, está acostumado aos regimes de exceção, está acostumado com a carência, com a ausência do poder público, com a fragilidade das instituições, com a escassez. Mas também está acostumado ao pensamento livre, está acostumado com o sol, com a natureza exuberante, com a contracultura inata em nosso país em relação aos ensinamentos dos colonizadores, é um povo que duvida, que tem senso crítico, talvez até extremamente exacerbado, é um povo bem humorado, com um jeito muito próprio de conduzir a vida em suas vicissitudes e em dias melhores. É malandro, no sentido de não permitir que as instituições prevaleçam às suas necessidades. Por isso o nosso jeitinho brasileiro não é exatamente algo negativo, mas uma resposta ao poder público – sempre ausente – mas que quando se faz presente emperra, obstrui, é exigente, autoritário e impositor. Mas é um povo que não sabe se harmonizar ao coletivo, trabalhar em conjunto, usufruir da força dos sindicatos, dos ajuntamentos, dos grupos que comungam os mesmos interesses. Não é um país com mente industrializada, cujos direitos e deveres passam por instituições seguras que incentivem o coletivo e o social como os países europeus, por exemplo. As instituições aqui não são seguras. É um povo desamparado, mas por isso mesmo criativo, individualmente criativo, que sobrevive por sua própria conta e risco e a duras penas. Mesmo nesse individualismo, é solidário. Exatamente por ter passado sozinho por tantas vicissitudes, pode dimensionar a dor do outro e ajudar sem nenhum interesse pessoal o outro a se erguer.
Mas não conhecemos direito o país onde moramos, onde compartilhamos com seres tão distintos, apesar do idioma ser o mesmo, os mesmos sonhos de conquista, de felicidade, de vontade de crescer e de fazer crescer os nossos filhos. Quantos de nós, em sua juventude ou em sua idade adulta e madura tiveram oportunidade de viajar por essa imensidão de terra, entrando pelo interior, conhecendo, falando, interagindo com o pessoal local. Ou apenas no litoral, se limitando às capitais. Quantos de nós tiveram a experiência de reconhecer no outro o seu povo, o seu companheiro de jornada, aquele que escolhe os seus dirigentes junto com a gente, aquele que engrossa as fileiras dos quartéis disposto a morrer pela pátria, aquele que recebe uma ninharia pelo pão de cada dia, aquele que torce pelo Brasil nos campeonatos internacionais, aquele que é digno porque assim nasceu, porque aprendeu mesmo fora das escolas que o seu lugar no mundo é pequeno, mas é íntegro. Quem é essa gente que mistura aos seus dentes careados um punhado de feijão e farinha, que mistura os seus sonhos do norte com os sonhos do sul, das grandes cidades com os lugares mais abandonados nessa enormidade de país. E como fica a educação diante desse grande desafio? E onde fica o aprendizado diante de tão enormes dificuldades? O acesso à escola, o acesso ao livro, o acesso à sua própria história, o acesso às nossas origens?
Atualmente a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 é a que está em vigor e, salvaguardada as suas limitações, atende a um percentual enorme de crianças e adolescentes em idade escolar. Todo o ensino no território nacional segue a padronização dessa lei que procura atender às diferenças regionais minimizando pelo menos na teoria as dificuldades de um país continental como o nosso. Atende a crianças em fase de alfabetização até a oitava série, perfazendo um total de nove anos de educação obrigatória por lei.
A organização do ensino fundamental se faz em dois ciclos. Os primeiros cinco anos em geral se dá em classes com um único professor regente, e o segundo ciclo em que o trabalho pedagógico é realizado por uma equipe de professores especializados em diferentes disciplinas. Para os primeiros anos escolares exige-se como formação básica do professor apenas a conclusão do segundo grau nas escolas de formação para o magistério. Considera-se que esse tipo de formação é suficiente para se lidar com crianças pequenas, cuja demanda se volta mais para um conhecimento muito restrito. Para os últimos anos do ensino fundamental exige-se a conclusão da graduação dos professores especializados em cada disciplina.
Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum a ser complementada por uma parte diversificada, de acordo com as características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. Neste currículo único estão incluídas disciplinas como português, matemática, conhecimento do mundo físico e natural, realidade social e política do Brasil, geografia, história – incluindo na História do Brasil as diferentes
O governo federal aplica em torno de 18% e os Estados e Municípios cerca de 25% dos impostos arrecadados, para a manutenção do ensino público. Se é pouco, muito.Se é adequado, insuficiente, não nos cabe avaliar, mesmo sabendo que a educação é a base fundamental, o alicerce primordial de toda sociedade. O que interessa aqui é saber o que temos atualmente a nosso alcance em termos de educação, procurando fazer o melhor possível a nossa parte. Se os professores são mal remunerados, se não são reconhecidos como deveriam são questões que estão servindo há muitos anos para justificar a qualidade do ensino que temos. Talvez fosse interessante mudarmos o discurso e enfrentarmos a nossa incapacidade de gerirmos algo adequado com os recursos que dispomos. Isso não significa que o ensino público fique à deriva dos humores dos nossos governantes, mas que se situe dentro do panorama nacional como ponto de coesão, de onde partirá a trama fina e sutil que poderá mudar definitivamente o tipo de consciência que o nosso povo adquiriu desde a colonização.O benefício será de todos.
Que professores temos? Neste vasto território continental, com enormes diferenças geográficas e históricas, quem são os educadores? Que tipo de escolas eles frequentaram? Que tipo de família tiveram? Que tipo de compreensão do mundo adquiriram com as suas experiências desde o nascimento até a fase adulta? Que tipo de crenças estão determinando seu comportamento, sua ideologia, sua religião, sua forma de filtrar as experiências, a forma como ensinam. É claro que jamais teremos respostas capazes de enquadrar nessas questões o enorme contingente de professores e educadores do ensino público, e até mesmo do ensino particular, porque sabemos que as diferenças humanas são enormes. Mas podemos estabelecer alguns parâmetros que ajudarão a compreender melhor a questão. Todos nós nascemos zerados, sem conteúdo, a não ser algo indefinido que trazemos como nosso que é aquilo que chamamos de personalidade. O tipo de família , o ambiente onde seremos criados, a escola que frequentaremos, enfim tudo aquilo que faz parte da nossa educação como seres humanos determinará a construção da nossa identidade social, que comungaremos com outros seres semelhantes a nós. Desde que nascemos começamos a fazer parte de um grupo social, no nosso bairro, na nossa escola, na família, nos orfanatos se não temos família, incluindo até mesmo aqueles abandonados que terão seu grupo de afinidade nas ruas, nos guetos, na vida em geral. Nascemos sós, vamos morrer sós, mas somos seres que visitamos este planeta e nos relacionamos intensamente uns com os outros enquanto estamos aqui. Às vezes fico pensando que talvez por esse motivo aqui estamos – para nos conhecermos, nos darmos as mãos e compartilhamos a beleza do planeta em que moramos.
Na verdade esses professores tiveram seu percurso escolar passando por instituições que também estavam mais ou menos equipadas da mesma forma convencional que temos hoje. O velho quadro, negro ou verde, a cor não importa. O velho giz ou pilot, a cor também não importa. Os mesmos olhares autoritários dos professores, amenizados muitas vezes pelos argumentos, pela racionalidade, pelas vozes macias, por uma democracia igualitária e, por isso mesmo, discriminatória. A mesma forma de passagem do conhecimento através da palavra, dos ensinamentos falados e exaustivamente repetidos e aprofundados à medida em que as crianças vão se transformando em jovens, dos textos escritos nos livros didáticos, nas bibliotecas, nas expressões artísticas como o teatro, a literatura.
O que há de novo hoje é a tecnologia. Os novos computadores abrem espaço para a comunicação e para uma educação globalizada, onde a informação passa do plano regional para o internacional com extrema facilidade. Caminhamos, com certeza, para um planeta nosso, único, interligado por células, canais, fios, torres, satélites, pela televisão, pelo rádio, pela internet, pelos celulares. Inovações, descobertas que revolucionaram o mundo, mas não as mentes, que revolucionaram a comunicação mas não o entendimento, que revolucionaram a face do planeta mas não promoveram ainda o salto quântico, a grande transformação espiritual do homem, o seu novo patamar de conquistas, a sua nova audácia. Algo que nada tem a ver com as religiões, nem com as instituições, nem com nenhum sistema de crenças, mas tem a ver com o significado maior da nossa existência, o que cada um veio fazer aqui, a autossuperação, a coragem de ir além daquilo que foi determinado atrás pelos nossos ancestrais, aquilo que está para além da educação convencional das escolas. Aquilo capaz de romper com o passado e promover a liberdade.
Enquanto estamos presos a conteúdos vazios, cuja finalidade não supre o que temos de essencial em nossa busca de nós mesmos, estamos simplesmente congestionando a educação com assuntos menores que levam apenas a um conhecimento superficial que hoje em dia pode ser adquirido facilmente na internet. Isso de alguma forma nos liberta de um conhecimento arcaico, ultrapassado, e nos abre a possibilidade de utilizarmos o tempo que nos sobra com uma educação que alavanque novas possibilidades. Não precisamos mais entupir o nosso ser com conteúdos inadequados a ele. Não precisamos mais privilegiar as disciplinas – que a cada dia se tornam mais sem sentido – em detrimento do nosso autoconhecimento. E quando digo autoconhecimento não me refiro apenas ao espírito, mas ao nosso corpo, à nossa mente, às nossas emoções. A grande revolução que a humanidade está passando e que se desdobrará na ampliação da consciência para além do estado letárgico em que ela se encontra, é que estamos paulatinamente aprendendo a cuidar de nós. Por exemplo, hoje temos um conhecimento a respeito de uma alimentação mais equilibrada, que os nossos pais não tinham. Temos uma consciência ecológica que eles também não tinham. Uma atitude em relação ao nosso corpo, à nossa sexualidade, aos nossos desejos que sequer podiam ser pensados há poucos anos atrás. Enfim, mudamos, mas a educação, enquanto instituição, não acompanhou no mesmo ritmo.
O que ensinamos às nossas crianças e jovens sobre o nosso corpo, como sofremos as consequências do que comemos, como o nosso corpo funciona, como a natureza se processa em nós? O que ensinamos a respeito das nossas emoções? O que sentimos? Como os nossos hormônios, na fase de crescimento, podem alterar o nosso comportamento? Como podemos lidar melhor com as nossas alterações de humor já sabendo disso? As transfomações que passamos no correr da vida. A menina que menstrua, o menino que adquire pelos e a voz engrossa. O que ensinamos para os nossos jovens sobre o funcionamento da nossa mente? Que tipo de pensamentos temos em geral no nosso dia-a-dia, como podemos ter mais consciência dos estados emocionais a partir de um melhor conhecimento de como funcionamos? Se conhecemos minimamente as relações de poder que governam o mundo. Se temos uma atitude crítica desenvolvida e um estado de reflexão permanente que nos ajudam a lidar com as dificuldades. Essas questões, sabemos hoje, são primordiais, porque interferem inclusive no processo de aprendizado. Cada um é um universo de descobertas. Passamos a maior parte da nossa idade adulta tentando compreender o que aconteceu, qual o resultado em nossas vidas do que aprendemos e o que conquistamos a partir daí. O que resultou, o que deu certo, o que não foi aproveitado, o que foi desperdiçado. Se somos felizes, se temos problemas emocionais, se estamos pelo menos no caminho da realização profissional, se estamos alinhados com a nossa felicidade. Se somos amorosos, se conquistamos uma vida feliz e digna, se temos saúde física, emocional, mental, moral e espiritual. Enfim, se valeu a pena todo o esforço e o investimento dos nossos pais, da nossa família, da sociedade, e de nós mesmos, em relação à nossa formação.
Os conteúdos escolares ainda se limitam ao ensino do português, da matemática, da história, ciências, geografia, como se a geografia não sofresse transformações quase que diariamente. Como se a história não fosse feita cotidianamente por todos nós. Ainda temos uma ideia de um mundo estático, como era o mundo até os nossos avós. Ou pelo menos a informação chegava com muitos anos de atraso dando a impressão de ser estático. A nossa história, aquela que ensinamos ao nosso jovem – mesmo o materialismo histórico de Marx – além de estar contaminada por formas europeias de criar a história, também é ultrapassada a cada novo dia nesse mundo convulsionado pelas guerras e pelo poder político e econômico. Ainda se estuda nas escolas os heróis nacionais – em geral militares – incentivando aquilo que mais desprezamos hoje, a violência e a guerra. Não que os militares não tenham o seu valor histórico, mas o verdadeiro personagem, aquele do qual ninguém fala, são as relações sociais, os interesses econômicos, as riquezas do planeta – como o petróleo, a água potável e a Amazônia – que estão sendo disputados a ferro e fogo. Aliás, o que sabemos a respeito do nosso planeta? Apenas que linhas imaginárias determinam o que é o território da Itália, o que é o Brasil, o que é a Índia? Os acidentes geográficos continuam desvinculados do nosso dia-a-dia? Não temos ainda a consciência de que o planeta é um ser único e que o que acontece mesmo longe daqui pode afetar a todos? Os grandes abalos sísmicos, os maremotos, os terremotos, a mudança no curso dos rios, a energia nuclear, etc.? Ensinamos a cuidar da Terra? Aliás, sabemos fazer isso ou só repetimos o que ouvimos na mídia? Sabemos o que é uma economia sustentável? Sabemos como transpor o umbral da anterioridade para darmos um salto que nos transformará como seres mais conscientes, menos predatórios, mais felizes?Temos senso crítico desenvolvido para entendermos e ensinarmos aos nossos jovens que a mídia está toda ela montada para o espetacular, para o medo e a desgraça, provocando no ser humano um estrago irreparável? Que a mídia, na maior parte das vezes, é a voz contaminada do poder, que pretende manter sempre o estado em que as pessoas e as coisas funcionem para a satisfação dos poderosos? Quantos livros um professor no Brasil lê por ano? Lê apenas os didáticos, voltados para sua disciplina? Lê livros de literatura, de arte, de economia, livros estrangeiros, de outras realidades? Vai ao teatro? Vai ao cinema com regularidade? Visita museus, vai a exposições de pintura e escultura, a recitais de música, a encontros de literatura? Se vive próximo a comunidades indígenas, conhece a vida na floresta, vive no seu dia-a-dia próximo à arte indígena, à mitologia, ao conhecimento ancestral das tribos? Conhece ervas? Passa para os alunos o seu conhecimento, respeita a sabedoria existente nessas comunidades? Se trabalha nas comunidades carentes dos grandes centros urbanos, já percebeu que a carência maior é a ignorância? Que a miséria verdadeira é a miséria moral, intelectual e afetiva? Que a evasão escolar está associada à falta de compreensão por parte dos educadores de que esses meninos não são de classe média e que, portanto, não têm crenças, interesses e limitações morais de classe média? E que por isso mesmo o seu imaginário não é europeu, ou seja, que as questões que fazem parte do universo da educação – importadas dos ideários europeus – não lhe dizem respeito? Que as comunidades do interior, onde vivem caboclos, cafuzos, indígenas, negros e brancos, são de uma etnia muito própria, singular, e que essa mistura cria um sincretismo no imaginário popular. E que isso pode ser uma riqueza desperdiçada por educadores condicionados a uma realidade estrangeira, importada dos grandes centros urbanos, exclusivamente branca, voltada para uma educação imposta pelo MEC.
Recebi informações através de fotos sobre as comunidades indígenas no Brasil, principalmente na Amazônia, e a forma como tribos inteiras estão sendo tratadas com medicamentos alopáticos. Uma quantidade enorme de medicamentos – os mais variados – desde paracetamol até potentes antibióticos são usados com frequência, pelos índios, com indicação dos próprios médicos que os assistem. Na verdade, esses índios, mais do que tratados estão sendo exterminados por esse tipo de medicina que não lhes convém. Acostumados a serem tratados com ervas da própria floresta, ao usarem esses medicamentos acabam por se intoxicar, prejudicando – mais do que beneficiando – seus corpos. Esses medicamentos aliados a uma alimentação inadequada, que eles utilizam hoje, como refrigerantes, açúcares, amidos processados e bebidas alcoólicas em grande quantidade, tem ajudado em grande parte a interesses econômicos na região, que apostam na dizimação natural dos índios através da boca.
O interessante é que sabemos que uma boa parte desses medicamentos industrializados são extraídos de plantas – em geral surrupiadas da Amazônia – levadas pelas grandes indústrias estrangeiras de medicamento e devolvidas, já processadas e retransformadas através de manipulação química, às nossas farmácias. Daí o frequente boato que circula vez ou outra ao se referir aos interesses estrangeiros em transformar a Amazônia em território de todos para que seja melhor explorada e – certamente – pulverizada por interesses econômicos em larga escala.
Aculturados, dependentes, desorientados entre as suas antigas crenças e aquilo que a sociedade intelectual ocidental lhes oferece, os nossos indígenas estão relegados à sua própria sorte, uma sorte manipulada pelas mãos dos “ignorantes” que trabalham na educação, na medicina, e no próprio governo. Em nome da igualdade a educação foi massificada e distorcida. As diferenças foram desrespeitadas. A riqueza imaterial de várias etnias foram dilapidadas. Em nome da igualdade e em nome de um deus ocidental , que ninguém vê, civilizações livres se tornaram escravas e desapropriadas de sua identidade milenar. Em nome do emprego e do desenvolvimento econômico, extensões de terra do tamanho do Acre foram devastadas e mortas, direcionadas para plantio, pasto e extração. E a isso chamamos progresso. Ou seja, para nós o progresso então é medido apenas pela geração de dinheiro, e não de riqueza. Levando-se em conta que o dinheiro é uma parte muito ínfima da riqueza, podemos dizer que esses lugares tornados inóspitos à vida prejudicam mais do que aceleram o crescimento social dos grupos que aí vivem, exportando a dor para o planeta inteiro através do desmatamento, da poluição das águas, da morte ambiental.
Eliane Ganem